Sim eu fui, e não apenas uma vez.
Encarei a Transamazônica por três vezes. A minha primeira expedição foi no ano de 2013, tomamos gosto e repetimos a dose em 2014, ambas as vezes fizemos a Transamazônica a bordo do Troller. Voltei pela terceira vez em 2016, já com o Transformers (minha segunda Triton, uma savana verde). Nessa última viagem, percorremos 12 mil kms em 45 dias. Saímos da Bahia passamos por Goiás, Tocantins, Mato Grosso, acessamos a Transamazônica por Porto Velho-RO, cortamos o Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e voltamos para a Bahia.
As viagens foram feitas nos períodos onde se espera as águas das cheias já baixando, isso faz com que a aventura seja maior e mais emocionante. Somando as 3 viagens acredito que já tenha feito a maioria dos trechos mais conhecidos e sonhados rsrsrsrs. Já cruzei a Transamazônica (BR-230) do seu início, em Cabedelo/PB até onde ela termina hoje, em Lábrea/AM. Ao contrário dos que muitos pensam, a Transamazônica não é apenas para homens, mulheres também podem encarar a travessia e superar seus desafios.
Já subi e desci a famosa BR-319, que liga a Transamazônica a Manaus/AM. Fiz também o trecho BR-319 de Manicoré, um ramal madeireiro, e fui até Nova Aripuanã num passeio de barco. Cruzei o rio Amazonas com os carros numa balsa, foram 36 horas de viagem entre Manaus e Juruti, fiz também as transJuruti e transUruará, subi a BR-163 até Alter do Chão, passando por Fordlândia, às margens do rio Tapajós.
Cruzei também a BR-174 até Boa Vista, onde passamos por uma das maiores reservas indígenas do país. E teve também a rodovia do Estanho, que liga o Mato Grosso à Transamazônica, passando pelos Campos Amazônicos: uma grande savana em plena Amazônia.
Transamazônica
A Transamazônica ou BR-230 é a terceira maior rodovia do país, possui quatro mil quilômetros de extensão e passa pelos estados da Paraíba, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas.
A Transamazônica corta o Brasil no sentido leste-oeste, por isso é considerada uma rodovia transversal, no entanto, em grande parte, não é pavimentada. Os extremos da rodovia são respectivamente em Cabedelo-PB e Lábrea-AM. O objetivo de se construir uma rodovia dessa proporção era interligar as regiões do país, especialmente a região Norte, com o restante do Brasil, e povoar aquela área desabitada.
A inauguração aconteceu no dia 30 de agosto de 1972, a intenção original era que a rodovia fosse pavimentada, ligando a região Nordeste e Norte, além do Peru e o Equador, somando oito mil quilômetros. Como a rodovia Transamazônica ainda não é completamente pavimentada, partes dela fica intransitável entre os meses de outubro e março, período que determina a época chuvosa na região. Sua construção provocou diversos problemas, entre eles o desmatamento.
A expedição
As expedições para a Transamazônica geralmente são organizadas por um grupo de pessoas afins e/ou por uma empresa especializada nesse tipo de aventura. Os comboios para esse tipo de viagem funcionam melhor com um número pequeno de carros porém, não se deve tentar fazer essa travessia com apenas um carro, por questões de segurança óbvias (o carro pode quebrar em áreas remotas, por exemplo).
O primeiro grupo dos clubes de Salvador a organizar uma expedição para a Transamazônica aconteceu em 2011, nessa não permitiram que menores de idade e mulheres participassem pelo receio de que as adversidades fossem complexas demais – medo de se deparar com grupos de madeireiros clandestinos e não prever as reações; medo de protestos indígenas; medo dos obstáculos e condições da estrada, enfim…
Nada que me convencesse mas, tive que acatar e participei da expedição como uma espécie de interlocutora entre os participantes lá e suas famílias aqui (naquela época as redes sociais ainda não eram tão utilizadas, muitas das que conhecemos atualmente nem existiam ainda, a exemplo do WhatsApp…).
Em 2013, parte dos participantes desse mesmo grupo decidiram voltar para conhecer outros trechos da rodovia, dessa vez foram duas mulheres, eu e Lala (Karla). No ano seguinte, decidimos voltar à Transamazônica e fazer também um dos trechos mais técnicos do offroad na América Latina: a Serra do Sol, na Venezuela, para tanto, decidimos contratar os serviços da empresa Hollanda 4×4 Expedições que realiza a Transamazônica Challenger – TAC, incluindo a Serra do Sol. O grupo foi tão especial que em 2016 resolvemos voltar a fazer uma parte da expedição com eles novamente.
Melhor período
O melhor período do ano para encarar a Transamazônica é o da vazante das cheias, quando as águas já não estão tão altas, porém, a lama do período é extrema.
Preparação
Um carro para esse tipo de expedição requer a instalação de alguns equipamentos indispensáveis como o guincho, snorkel, pneus adequados e um rádio comunicador. A depender dos trechos escolhidos o carro deve passar por uma preparação específica de suspensão, a fim de aumentar a altura do vão livre do carro, para a transposição das valas profundas de lama e reforçar a mesma, como também para a colocação de pneus maiores.
É necessário levar todo material de camping (barraca, saco de dormir, lonas plásticas, utensílios de cozinha, alimentos de cozimento rápido e que sustentem, fogareiro, entre outros). As roupas devem ser leves e confortáveis porém, é aconselhável o uso de calça e mangas compridas, bem como o uso de botas/tênis, devido a grande quantidade de insetos e outros animais que podem ocasionar incidentes e, neste caso, uma farmacinha básica é fundamental, não esquecendo de incluir antialérgicos, analgésicos e um bom repelente.
Participação feminina
Lembra do grupo de Salvador que foi pra lá pela primeira vez e vetou a participação de mulheres por conta dos riscos… sabe o que hoje eles dizem sobre não ter ido mulheres naquele ano? Que se soubessem que fariam escolhas erradas nunca teriam vetado, em inúmeros momentos lembraram de que uma mulher faria grande diferença, a exemplo da escolha do que retirar de material do carro para aliviar o peso na travessia de Lábrea.
Uma mulher nunca deixaria que tirassem água e comida dos carros, pois foi a primeira coisa que tiraram e, teve gente que até água de poça de lama precisou beber para matar a sede… Porém, a participação das mulheres ainda é muito baixa. Na minha primeira ida fomos em 2 meninas. Na segunda vez, no primeiro trecho éramos 3 mulheres, nos dois últimos só eu fiz. E em outros grupos geralmente também é assim, quando tem mulher não passa de 2 ou 3.
As meninas não enfrentam esse tipo de viagem por vários aspectos, acho que o primeiro deles é até a falta de incentivo dos maridos, pois normalmente dizem que é uma viagem apenas de homens, que as mulheres não vão, cansei de ouvir: “ah, se eu soubesse que ía mulher eu teria me animado pra ir”… Tem também a questão da casa, filhos, é uma viagem de no mínimo 20 dias longe de casa, quem normalmente fica cuidando das coisas?
E ainda tem o fato de ser uma viagem bastante rústica, dormir em barracas muitos dias; banho muitas vezes é no rio, isso quando não dormimos sem ele; a alimentação é outro quesito complicado, ou cozinhamos ou comemos em restaurantes de postos de gasolina e em botecos de beira de estrada; na maioria dos dias passamos o dia todo sujos de lama, molhados das chuvas… não são muitas mulheres que curtem esse tipo de aventura.
Machismo e preconceito
Se tem uma coisa que nunca tive problemas nas idas para a Transamazônica foi com relação a machismo e preconceito, muito pelo contrário. Todos têm um cuidado maior conosco, quando ficamos em pousadas normalmente deixam o quarto melhorzinho pra gente (tipo quarto com banheiro privativo).
Na hora do papel de Zequinha, quando possível sempre vem alguém lhe ajudar ou fazer “sua tarefa de Zequinha”, muitas vezes precisei brigar pra poder ajudar nas atividades rsrsrsrs. Até pra preparar as comidas os meninos correm pra ajudar, é muito legal isso.
Dificuldades
Cada trecho da rodovia teve/tem dificuldades diferentes e também depende da quantidade de chuva/água que já tenha caído, além disso, a cada ano novos trechos vêm sendo asfaltados. Das expedições que fiz, para obstáculo de lama, eu considero na primeira ida o trecho de Lábrea o pior, porém nos demais anos, devido às obras de melhorias, fizemos o mesmo trecho com muito mais facilidade.
Como trecho mais técnico e arriscado sem dúvida considero o da Serra do Sol, onde pela primeira e única vez presenciei um acidente grave- já no primeiro obstáculo um carro capotou ao tentar subir uma ladeira. O carro acidentado e mais outros dois retornaram dali mesmo.
Como mais perigoso no que diz respeito à nossa segurança pessoal considero a minha primeira passagem pela transUruará, cruzamos com muitos caminhões madeireiros clandestinos atolados ou em plena atividade de carregamento das toras de árvores, mas não tivemos problema algum. Nos outros anos que passei pela transUruará a estrada havia sido melhorada e já quase não havia mais atividade dos madeireiros clandestinos.
O trecho pelo rio Amazonas foi bem marcante também, pegamos uma grande tempestade que obrigou o comandante da embarcação a ancorar a balsa num barranco do rio até a tempestade diminuir. O som dos troncos de árvores que boiavam na água batendo na prancha da balsa era assustador. Os ventos fortes balançava a balsa e, consequentemente, nossos carros. Foram momentos de muita apreensão, nosso maior receio era que a balsa fosse danificada e causasse um grave acidente mas, tudo terminou bem.
Os acampamentos que montamos durante a viagem não eram tão confortáveis. O banho muitas vezes era de rio. Barulho de animais silvestres, ventos fortes, chuva, picadas de mosquitos, insetos gigantes, rastros de onça pertinho dos carros, foram os principais ingredientes da expedição. A Transamazônica é para as fortes.
Sem dúvidas, muitos trechos hoje em dia são de asfalto de melhor qualidade, muitas travessias de balsas foram substituídas por pontes, assim como muitas áreas florestadas foram substituídas por extensos plantios de grãos e criação de gado.
Imagens marcantes
Nessas idas a Transamazônica houveram muitas situações marcantes, cada viagem, cada trecho, cada grupo, cada acampamento, cada lugar descoberto marca a expedição. Meu sonho é numa viagem dessas ver uma onça, até hoje acredito que tenha visto uma cruzar muito rapidamente a frente do carro mas, foi tão rápido que não deu pra matar essa minha vontade.
Aliás, na Transamazônica a maioria dos animais que vi, infelizmente estavam mortos, atropelados às margens da estrada – antas, capivaras, pássaros, raposas, tamanduás, cobras, entre outros. Era nítido que a vegetação era melhor preservada nas áreas próximas às áreas de reserva das tribos indígenas- assim que acabava o limite vinham os desmatamentos, os plantios, as criações…
Desigualdade
A realidade dessa região do nosso país é muito diferente e distante de tudo que a gente esta acostumado a ver. A luta pela sobrevivência é enorme. Existe muita pobreza e miséria, tudo é longe e de difícil acesso, as cidades em sua maioria não possuem estrutura básica. Muitos lugares e pessoas são esquecidas/abandonadas pelo poder público e pelo restante do país, e ao mesmo tempo é uma região rica em recursos naturais, cultura e paisagens…
Aprendizado
Fazer a expedição à Transamazônica transforma qualquer pessoa, o mínimo que seja, tanto na prática do offroad extremo, quanto na vida. Impossível voltar de lá indiferente a tudo que vemos e vivemos. É uma experiência inesquecível e engrandecedora, principalmente no aspecto “ser humano”. Quando você volta a dormir em sua cama você dá um valor que provavelmente nunca tivesse dado, não só a ela mas a tudo que você tem… A expedição te faz enxergar como a diferença de classes é gigantesca e lamentável.
Próxima Expedição Transamazônica
Estamos montando um grupo para estudarmos um novo trajeto mas, tudo muito verde ainda, sem data, nem local definidos. Por enquanto, fico aqui com essas lembranças para a vida toda!
Fonte: https://m.brasilescola.uol.com.br/amp/brasil/transamazonica.htm
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